Por Fabiana Frayssinet
RIO DE JANEIRO, 19 de junho (TerraViva) Leonardo Boff não gosta de falar da Carta da Terra como se fosse uma nova Bíblia. Contudo, o documento, que segundo o teólogo brasileiro é o “mais belo do Século 21”, resgata um caráter sagrado: a salvação da vida.
“Muitos criticam que a Carta da Terra quer substituir a Bíblia. Não. É uma proposta generosa para a humanidade, com espiritualidade, com a preocupação de salvar o projeto planetário humano que está em risco”, disse Boff ao TerraViva, um dos responsáveis pela elaboração desse texto, cuja versão final foi divulgada em 2000. Boff, um dos expoentes da corrente progressista católica conhecida como Teologia da Libertação, considera que a espécie humana corre o risco de “ir ao encontro de uma catástrofe”. O “ser humano aprende a história, mas não aprende nada da história. Aprende todo o sofrimento. E nós não queremos sofrer. Queremos aprender do amor à Terra para não irmos sofrendo por seus caminhos”, afirmou.
Mais de 20 personalidades internacionais realizaram amplas consultas na década de 1990 para chegar ao texto definitivo da Carta da Terra, incluindo vários prêmios Nobel da Paz, como o ex-presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachov, e a ativista queniana Wangari Maathai (1940-2011). O TerraViva perguntou a Boff se a atual crise ambiental, social e econômica pode ser interpretada como o Apocalipse dos livros sagrados. “Se assumir a perspectiva da economia vigente, do sistema das grandes multinacionais e prolongarmos isso, iremos ao encontro de um abismo, de uma catástrofe ambiental e social, com risco de eliminar grande parte da humanidade”, respondeu.
Para o teólogo, a “salvação” está nas “forças contrárias”, que “são as formas de vida, que mostram ser possível produzir alimentos de maneira diferente, mais solidária, menos competitiva… Utilizar de outro modo a água, repartir com igualdade”. Por todo lado “há organizações que estão somando energias nessa linha”, apontou Boff. Nesse aspecto, afirmou que o “senso comum triunfará, porque a vida é mais forte do que a morte”. “A Terra já passou por grandes crises e sempre se saiu bem, e não será agora que afundará”, destacou o ex-sacerdote católico, que foi condenado a “um ano de silêncio” pelo Vaticano em razão de suas teses teológicas.
A Carta da Terra, surgida de diferentes forças sociais, científicas e religiosas, não obteve consenso oficial durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, conhecida como Rio 92, e exigiu anos de consultas para chegar a um texto final. A iniciativa “nasceu do grito da Terra e não da burocracia estatal”, indicou Boff. Trata-se de um documento de princípios agrupados em grandes temas, como respeitar e cuidar da comunidade, da vida, da integridade ecológica, da justiça social e econômica, da democracia e da não violência e da paz.
Hoje “temos que forçar o diálogo, temos que fazer manifestações, temos que pressionar, para que eles ouçam a voz que vem de baixo”, enfatizou Boff ao se referir aos negociadores da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que acontece no Rio de Janeiro e terá sua reunião de alto nível entre 20 e 22 deste mês. O religioso conversou com o TerraViva após o lançamento da Rede Brasileira da Carta da Terra, convocada pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), em paralelo à Cúpula dos Povos. Esta rede procura “inspirar” os governos a incorporarem seus princípios “éticos” nas políticas públicas e legislações, explicou ao Terraviva a secretária-executiva do IDS, Alejandra Reschke.
Em seu discurso Boff fustigou o conceito de economia verde, em debate na Rio+20, e os documentos analisados nesse campo como “materialistas, miseráveis, que só falam de economia e mais economia e nada de espiritualidade ou humanidade”. A “Carta da Terra não é divulgada porque não é digerível, é indigesta para o mundo capitalista”, acrescentou. “É o mais belo documento do Século 21. Com ele se inicia o século com algo novo, porque tem “algo do Espírito Santo para o novo milênio”, ressaltou.
Boff recordou que, segundo a ciência, anualmente desaparecem milhares e milhares de espécies de flora a fauna. “Pode significar também que chegou nossa hora”, alertou. O teólogo exortou os negociadores governamentais a deixarem de lado interesse nacionais e defender “os interesses coletivos da humanidade”. Boff apostou na mudança em outros dois “grandes atores” da conferência, os empresários e a sociedade civil organizada. Os empresários estão unindo forças para dizer “aceitamos que haja aquecimento global, que os recursos são escassos e que temos de mudar a forma de produzir e consumir”, observou Boff, que, sobretudo, deposita confiança na Cúpula dos Povos, “onde circula a esperança”. (FIN/2012)